Desde que fui morar na Rua da
Tranquilidade, há cerca de sessenta anos, pouco ou quase nada havia mudado
naquele pedacinho de sossego, pelo menos até a inauguração de uma cabine
telefônica há cerca de um mês, bem em frente à minha casa.
A instalação daquela bendita cabine não
alterou apenas a tranquilidade da rua, mudou também a minha maneira de ver e
ouvir o mundo.
Tudo começou uma semana após a
inauguração da estrutura.
Estava eu lendo o jornal pela manhã,
como de costume, na companhia do bom e velho Riley Ben King, quando tive a
impressão de ter ouvido o meu nome. Aproximei-me da janela e tive a certeza de
que realmente era sobre mim que um jovem desconhecido falava ao telefone,
dentro da cabine. Ele falava tão alto que mesmo com o isolamento acústico da
estrutura era possível ouvi-lo combinando algo com certa Maria Bolina a qual, a
julgar pelo jeito que ele gritava, não seria de se estranhar que fosse surda ou
tão velha quanto eu.
Não sou de bisbilhotar, mas já que eu
havia escutado meu nome, resolvi me aproximar ainda mais da janela para escutar
o resto da conversa.
“Sim, Dona Bolina”, dizia o rapaz. “Recebi
a sua carta com a foto do Arthur. Estou ligando para dizer que aceito o
serviço. Em dois dias, no máximo, chego com ele em sua residência, devidamente embrulhado.”
Sequestro! Pensei.
A minha primeira atitude foi ligar
para a polícia, é claro, porém lembrei que eu não tinha telefone em casa e o aparelho
mais próximo estava ali, na minha calçada, sendo utilizado pelo meu suposto
sequestrador.
“Tudo bem Dona Bolina. Sou
profissional”, seguia falando o desconhecido. “Velhos são a minha especialidade.
Aquilo que aconteceu com o braço do outro foi um pequeno acidente. Quebrei sem
querer, mas garanto que com o Artur vai ser diferente, terei mais cuidado na
hora da prensa e caso algo não saia conforme o planejado, não há nada que um
bom serrote não resolva, rsrsrs... Contudo, vou logo avisando que pelo que vi
na foto, ele já está bem desgastado”, disse ele esboçando um sínico sorriso.
Naquele instante o medo foi maior que
a minha prudência. Peguei o busto do B.B. King, abri a porta e corri em direção
à cabine...
O rapaz nem viu o que o atingiu... Numa
fração de segundos o meu suposto sequestrador estava ali, aos meus pés,
desacordado.
Entrei rapidamente na cabine e tranquei
bem a porta para o caso daquele meliante despertar de repente.
No telefone pendurado, um ruído
estridente...
Aproximei o ouvido e, do outro lado,
alguém grasnava irritada: “Mike! Mike! Você ainda está aí, Mike? Que som
estranho foi esse? Mike, eu sei que você está aí, seu Luthierzinho de uma figa.
Não me deixe falando sozinha!”.
Eu poderia ter desligado o telefone e
ligado para a polícia, mas por curiosidade, respirei fundo e falei, tentando
disfarçar a voz: “é... é-é o Arthur!”.
Ela era mesmo um pouco surda, pensei.
Nem percebeu que a voz não era a do Mike.
“Até que enfim, Mike, como eu estava
falando, enviarei o Artur para você porque sei que você é o melhor em conserto
de braço em toda esta região. Trata-se de um trabalho muito delicado, pois ele
é um instrumento muito raro, desses que não se compra em qualquer esquina. Ele
está com o braço um tanto empenado e já não afina mais. As tarraxas estão
duras, os trastes marcados e o cavalete começando a descolar. Sei que você é o melhor
nesse tipo de restauração, meu jovem. Não se preocupe com os custos, apenas
tenha cuidado para não danificá-lo ainda mais e...”.
Ao perceber do que se tratava, bati o
telefone e desisti de ligar para a polícia, é claro. Escondi o B.B. King sob o
roupão, e voltei depressa para o meu jornal, mas não sem antes me certificar de
que ninguém havia testemunhado o ocorrido.
Arthur... Rum! Tanto nome para se
colocar num violão...